Iara, fora da Lenda


Poucos que me conhecem sabem da minha história. Folclore à parte, tudo o que vivi foi muito real -  me fez conhecer e transformar a realidade para hoje estar aqui.

É essa Iara quem narra a história que vocês vão conhecer agora.

Quando criança, vivi muitos anos em um dos bairros mais violentos da periferia de São Paulo - o Jardim Ângela. Minha família era pobre, e vivia sob o teto frágil ameaçado pelo temperamento instável de meu pai, alcoólatra e violento. Qualquer coisa era motivo para ameaças à nossa vida,muitas vezes na forma de violência física, capaz de arrasar não apenas nossa integridade como nossos sonhos e esperanças.

Eu tinha tudo para dar errado.

Estava a um passo de me envolver com pessoas erradas, e cometer erros dos quais me arrependeria muito em anos seguintes, que poderiam me render fichas na polícia, envolvimento com traficantes e uso do meu corpo, nesta altura sem alma ou esperança, em situações que nem gosto de imaginar.

Mas tudo deu certo. Muito certo, posso afirmar.

Eu adotei um esconderijo. Um lugar que eu simplesmente venerava.

Para muitos, era apenas a Escola Municipal Profº. Mário Marques de Oliveira. Lá, nesse meu porto seguro, haviam pessoas que me acolhiam, que sabiam ouvir e devolver seus comentários na forma de ensino e conselhos, Eu conseguia ficar livre por algumas horas não apenas do meu pai, mas também dos riscos que as más companhias  ofereciam.

Hoje eu vejo a intensidade do papel da Escola nesse resgate da criança Iara, pequeno ser em formação. Eu não perdia um evento, uma atividade, qualquer pequena reuniãozinha organizada pelos professores era, para mim, uma grande chance de tornar à vida. Respeito, cidadania, direitos. conceitos que se concretizavam, e que foram contribuindo na minha formação pessoal e no meu caráter.

Eu continuei na escola, e vi que lá seria o meu lugar de realização no mundo. Os anos passaram, os fatos foram se sucedendo, e eu continuava agarradinha à minha tábua de salvação – porém sem temer a própria vida. Nessa altura, já sabia onde estava o meu lugar ao sol, e o que fazer para conquistá-lo com dignidade e soberania.

Vários anos se passaram, e muitas coisas aconteceram. Eu me casei e, em 1983, nasceu a minha primeira filha. Neste período, decidi entrar profissionalmente na área da educação.  Mas, eu não conhecia nada e resolvi me formar pensando “apenas” em trabalhar meio período e dedicar o restante do tempo ao bebê.

Nada disso aconteceu.

À medida em que comecei a estudar, eu me encantei pela Educação, como nunca imaginei ser possível. Com dificuldade eu me formei e sabia que vinha uma parte bem mais complicada agora – eu precisava aprender a ensinar. Reuni o que eu tinha em mãos (principalmente a vontade de aprender e a sede de participar desse mundo), e bati à porta da PRIMA Escola (Princípios Montessorianos Aplicados), uma instituição na linha montessoriana próxima à minha casa. Eu pedi uma chance, e me ofereci para ajudar na escola em qualquer função, em troca apenas de poder estar presente no ambiente daquela escola especificamente, que tanto me atraía sem que eu pudesse entender de fato o motivo.

Foi nesse ambiente que  tudo começou a fazer sentido.

Pessoas maravilhosas me mostraram um novo método de ensino. Mostraram uma maneira não de estudar, mas de aprender com satisfação. Um lugar onde os alunos adoram ir e querem ficar. Eu vi professores sendo chamados pelo nome e tratados como “você”; vi alunos com autonomia para ir ao banheiro sem pedir autorização, e que retornavam rapidamente à sala. Eu quase “pirei”pois, na minha concepção de Educação, jamais pensaria que tudo aquilo era possível.

Foram 3 anos e meio de aprendizado com alegria e realização plena, no papel de professora conquistado com meu trabalho. Nesse período, fiz a pós-graduação em psicopedagogia.

Em 94, eu e minha família nos mudamos para Vinhedo, cidade que fica a 40 minutos de São Paulo. Lá, trabalhei em algumas escolas, ensinando Filosofia para crianças do Fundamental, coordenando cursos em todos os níveis de ensino.

Em outubro de 1998, foi fundada a Escola de Educação Infantil Terrinha, e fui convidada para trabalhar como Coordenadora Pedagógica. Eu já havia assimilado um modelo de ensino diferente, que considerava unir o prazer do brincar típico da infância, com a importância de transferir o conhecimento para a criança de forma natural, sem traumas ou aborrecimentos. Seu voto de confiança em minha proposta foi incrível, e iniciamos firmes nesta direção já em 1999.

Hoje, tenho a convicção de ter optado por um caminho que permite crescer no aprendizado, na vivência e na liberdade de viver. E sei o quanto vale a pena lutar e acreditar. E penso que, tendo sido privilegiada com tantas oportunidades e aprendizado, tenho o dever de passar o que aprendi a quem, assim como eu, vê no Conhecimento e no Ensino a oportunidade de transformar realidades.

Quando eu olho para trás e vejo a Iara menina, que poderia ter se afogado no mar de adversidades que era a sua vida, eu encontro força - muita força. Mesmo criança, ela soube olhar para a Educação e entender que o conhecimento traz idéias, que abrem portas, suscitam ações e mudam destinos.


Iara